sábado, 19 de agosto de 2017

Masculinidade em construção

Hoje abordaremos um livro clássico, "Manhood in the making" (Masculinidade em construção) é o livro mais famoso do antropólogo David D. Gilmore e, provavelmente, o estudo mais completo sobre a masculinidade em diferentes sociedades. Nesse livro, o autor reuniu tudo o que conseguiu sobre o que cada sociedade considera "um homem de verdade" e por que, resultando numa análise aprofundada de 11 sociedades mais uns pedaços de outras.
Essa obra tende a ser odiada por defensores da teoria de que gênero é uma construção social e que existem múltiplas masculinidades e feminilidades (por exemplo, Pleck, 1995). A razão segundo eles é que Gilmore defende um essencialismo universal e imutável do que é homem e o que é mulher. Entretanto, eu li o livro e não vi nada de essencialismo. Na verdade, o autor deixa bem claro, logo na página 3, que acredita ser a cultura mais importante, apresentando prós e contras das teorias psicanalíticas, evolucionistas e marxistas. 

Gosto desse livro, principalmente, por ser uma verdadeira análise de diferenças culturais. Não é que nem os incontáveis "sabe-tudo" que dizem ter comparado diferentes culturas, entendendo "diferentes culturas" por "São Paulo x Bahia", "Brasil x EUA" ou "filósofos do século XX vs Platão". O autor compara os habitantes de Andaluzia (região da Espanha),  os índios meinacos (estado do Mato Grosso), japoneses, sambianos (Papua Nova-Guiné), judeus, americanos, o povo masai (Quênia e Tanzânia), o povo semai (Malásia) e outros
O livro é iniciado com algo que não é novidade para quem já leu alguma coisa sobre diferentes culturas: a divisão sexual de papéis parece ser a mesma em praticamente todo o mundo. Segundo o autor, apesar de haver diferenças culturais, as semelhanças são mais frequentes e, a medida que vai analisando os ideais de masculinidade e as explicações dadas por cada povo, vai concluindo essa divisão de papel têm íntima conexão com desafios comuns a quase todos os povos. A divisão de papéis, para Gilmore, parece ser uma estratégia de sobrevivência que busca conciliar duas forças, geralmente, opostas: nossos desejos individuais e as demandas sociais/ambientais.
Para entendermos os ideais de masculinidade é preciso ter em mente que "uma sociedade pode sobreviver à perda de homens mais facilmente que à perda de mulheres" (Friedl, 1975, p. 135 apud Gilmore, 1990, p. 121). Isso porque as mulheres só podem ter um ou dois bebês por ano, mas os homens podem ter um quantidade quase ilimitada, desde que hajam mulheres disponíveis. Além do mais, a gestação e lactação atrapalham a mulher em certas atividades. Por essa razão, acaba sobrando aos homens os trabalhos mais perigosos e que, se tiverem escolha, jamais aceitariam.
Sendo assim, as sociedades precisam obrigar os homens a assumirem tais tarefas através do que Farrell (1986) chama de "suborno social": se eles não desempenharem seus papéis com competência, serão ridicularizados, marginalizados e lhe serão negadas o status de "homens de verdade" (essas três consequências sendo consideradas piores que a morte). Por outro lado, se eles desempenharem com eficiência, serão admirados e amados, além de receberem vários benefícios, como o direito de ter quantas esposas quiserem.
Para isso, o status de "homem de verdade" consiste de um estado artificial (não adquirido naturalmente, mas induzido culturalmente), que precisa ser ganho contra poderosas adversidades, pode ser perdido e consiste em uma atuação pública. Apesar das diferenças culturais, há três elementos quase sempre presentes: engravidar mulheres, proteger seus dependentes e sustentar amigos e parentes; tarefas que exigem liberdade de ação.
Um exemplo notável é do povo Samburu (Quênia), no qual um homem de verdade deve ter como objetivo se tornar um patrono tribal. Para isso, devem ser criadores de gado eficientes e, no passado, guerreiros habilidosos. Com a colonização, a guerra não é mais permitida, mas os jovens ainda fazem competições de altruísmo para ganhar status. Um homem de verdade deve dar mais que receber e aquele que consegue dar mais, recebendo menos é mais homem que o inverso. Também é fundamental que tenha virtudes como assertividade e destemor. Por fim, para os Samburus, um homem ser dependente de alguém, seja outro homem ou mesmo uma mulher, é considerado um atentado contra a própria honra.
Outro exemplo é o Japão, em que ser "homem de verdade" consiste em viver para o coletivo, sem jamais reclamar. Assim, as virtudes de um homem são a coragem, determinação, responsabilidade, papel ativo nas relações econômicas e sexuais, autonomia e "jogo de cintura". Quem está acostumado a assistir animes estilo shonen já deve ter percebido que o protagonista é aquele que "recebe os sentimentos" de seus amigos e protege o mundo não por glória ou por ser um idiota que gosta de correr perigos, mas porque tem o poder e habilidade de proteger aquilo que seus amigos amam.
Como muitos podem tentar argumentar, existem exceções. O povo semai e os taitianos são exceções e são geralmente vistos como exemplos de sociedades em que não há divisão de gênero. Isso é verdade, mas também é verdade que eles são um povo que não precisam arriscar a vida para obter comida, água ou matéria-prima para seus utensílios. Tudo que precisam existe em abundância e é de fácil obtenção. Também não precisam se preocupar em defender mulheres e crianças de ataques de animais ferozes ou em guerras, pois esses não existem ou é fácil de fugir e sobreviver. Consequentemente, não há necessidade dos homens competirem entre si, a economia é totalmente cooperativa e a ambição é desencorajada.
Entretanto, Gilmore encontrou relatos de pessoas desses povos que pareciam questionar a masculinidade de algum outro integrante. Assim, ideologias de masculinidade também existem entre esses povos, eles apenas não dão tanta atenção quanto aqueles que dependem de tais ideologias para sobreviver.

Concluindo, os papéis sexuais, principalmente esses que nós aprendemos a chamar de "papéis tradicionais", "hegemônicos" e/ou "machistas", consistem de adaptações a ambientes sociais com o objetivo de superar adversidades ambientais e escassez de recursos, preparando os homens para defender seu povo e sua família, a suportar os desafios de trabalhar, além de ser esperado por ambos os sexos. Tais papéis devem ser desempenhados de forma pública para garantir a estabilidade, segurança e poder coletivo do grupo, sendo o fracasso punido com a perda de sua identidade de gênero/sexual. Aqueles que desejam o desaparecimento de tais ideologias devem ser capazes de assumir o papel que tais ideologias desempenharam ao longo de incontáveis séculos.

Obras citadas não disponíveis online
Farrell, W. (1986). Why men are the way they are. Ebook ed. New York: Berkley Books.
Gilmore, D. D. (1990). Manhood in the making: cultural concepts of masculinity. New Haven, London: Yale University Press

sábado, 5 de agosto de 2017

Espelho, espelho meu, há alguém mais forte do que eu?

O ideal de corpo masculino tende a ser o de homem musculoso. Para crianças, um homem deve ter músculos para ser forte e rápido; para adolescentes, homens devem ser grandes, algo que ser musculoso ajuda muito; até gays e idosos idealizam o corpo masculino como sendo musculoso, com a diferença que homossexuais dão mais valor à questão estética enquanto idosos dão mais valor à independência e funcionamento do corpo. (Drummond, 2010)

Talvez por esse ideal, a maioria das pessoas que sofre de dismorfia muscular é homem. Também conhecida como "vigorexia", "complexo de Adônis" e "anorexia reversa", a dismorfia muscular consiste num transtorno mental
"[...] que ocorre quase exclusivamente no sexo masculino, consiste na preocupação com a ideia de que o próprio corpo é muito pequeno ou insuficientemente magro ou musculoso. Os indivíduos com essa forma de transtorno, na verdade, têm uma aparência corporal normal ou são ainda mais musculosos. Eles também podem ser preocupados com outras áreas do corpo, como a pele ou o cabelo. A maioria (mas não todos) faz dieta, exercícios e/ou levanta pesos excessivamente, às vezes causando danos ao corpo. Alguns usam esteroides anabolizantes perigosos e outras substâncias para tentar deixar seu corpo maior e mais musculoso." (DSM-V, p. 243)

Identificada em 1993, recebeu o nome de "anorexia reversa" por suas semelhanças com a anorexia, pois os comportamentos e crenças de dismórficos e anoréxicos tendem a ser os mesmos, mas de forma "invertida". O termo oficial mudou para "dismorfia muscular" em 1997, porque concluiu-se que a perturbação principal eram os exercícios físicos, sendo secundário as perturbações alimentares (Murray, Rieger, Touyz, & García, 2010). Assim, dismórficos acreditam serem muito pequenos e magros; evitam deixar partes do corpo à mostra por sentirem-se feios e inadequados; passam a se alimentar com mais frequência, geralmente em horários rígidos, e com mais proteína; praticam mais atividades físicas para fortalecer os músculos, como levantando peso, às vezes, de forma exagerada e sobrecarregando o corpo; além disso, ao contrário de anoréxicos e bulímicos que usam laxantes e inibidores de apetite, não é incomum dismórficos usarem esteroides anabolizantes e androgênicos (Behar & Aranciba, 2015)

De acordo com a revisão realizada por Tod, Edwards e Cranswick (2016), os sintomas costumam surgir no final da adolescência, começo da vida adulta (~20 anos), passam mais de três horas por dia pensando em serem mais musculosos, priorizam os exercícios e dietas a ponto de terem prejuízos no trabalho e nos relacionamentos, evitam ser vistos por preocupação com a própria imagem corporal.

Os comportamentos alimentares e de práticas de exercícios físicos tendem a obedecer padrões rígidos que se assemelham aos rituais do Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC). Por outro lado, devido sua similaridade com a anorexia, inclusive na resposta aos tratamentos, há quem defenda que a dismorfia muscular deva ser considerada um transtorno alimentar e, como a pessoa se vê de forma diferente de como realmente é (geralmente, dismórficos são muito mais musculosos que a maioria das pessoas), pode ser considerado um Transtorno Dismórfico Corporal (quando considerados diferentes uns dos outros).

Outras polêmicas envolvendo a Dismorfia Muscular incluem o desconhecimento do quão comum ela é na população em geral e sua definição ser vaga, podendo incluir formas não patológicas de preocupação com a própria imagem e de ficar mais musculoso.

Para o DSM-V, os critérios diagnósticos para Dismorfia Muscular são:

  1. O indivíduo está preocupado com a ideia de que sua estrutura corporal é muito pequena ou insuficientemente musculosa. Isso vale mesmo que o indivíduo esteja preocupado com outras áreas do corpo, o que com frequência é o caso.
  2. Em algum momento durante o curso do transtorno, o indivíduo executou comportamentos repetitivos (p. ex., verificar-se no espelho, arrumar-se excessivamente, beliscar a pele, buscar tranquilização) ou atos mentais (p. ex., comparando sua aparência com a de outros) em resposta às preocupações com a aparência.
  3. A preocupação causa sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
  4. A preocupação com a aparência não é mais bem explicada por preocupações com a gordura ou o peso corporal em um indivíduo cujos sintomas satisfazem os critérios diagnósticos para um transtorno alimentar.

Caso você ou algum conhecido apresentem as características listadas acima, é importante que procure um profissional de saúde mental para confirmar a suspeita e receber o tratamento adequado. Lembre-se de curtir, comentar, compartilhar essa postagem para divulgar esse importante conhecimento e inscreva-se no blog para receber as atualizações.

Obras citadas não disponíveis online
Drummond, M. (2010). Men's bodies throughout the life span. Em C. Blazina & D. S. Shen-Miller (Eds.), An international psychology of men (pp. 159-188). New York: Routledge.